quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Juízes e Juízes

Juízes e Juízes
Das “gostosas” do Big Brother à experiência de J.B. Herkenhoff




Gerivaldo Alves Neiva *
Quando leio notícias sobre sentenças que fazem referência à “gostosura” de mulheres participantes de programas de televisão; quando vejo juízes de direito com medo de participar do debate sobre a punição aos torturadores da ditadura militar em nome da “prescrição” do crime de tortura, imprescritível para o Direito Internacional; quando vejo juízes de direito trancados em seus gabinetes em nome da “imparcialidade”, como se todos fossem realmente iguais; quando vejo juízes de direito despejando famílias de sem-teto e sem-terra de imóveis abandonados e latifúndios improdutivos em nome do “direito sagrado” de propriedade, desconsiderando a obrigação da função social; quando vejo juízes de direito subservientes ao poder econômico, mantendo a “legalidade” de cláusulas contratuais que proporcionam lucros exorbitantes aos bancos, em nome da “força dos contratos” e da “segurança jurídica”, embora levando à miséria e insolvência o cliente; quando vejo juízes de direito que tratam crianças e adolescentes desvalidos como sendo “delinqüentes”, esquecendo que são exatamente crianças e adolescentes que não tiveram oportunidade social diferente; quando vejo juízes de direito que ainda pensam que Direitos Humanos é tarefa de quem “defende bandido”, esquecendo os princípios constitucionais e a Declaração Universal dos Direitos Humanos; quando vejo juízes de direito que ainda pensam que o Direito é a Lei e que “dura Lex, sede Lex”; quando vejo juízes de direito que ainda se rebaixam à condição de “servos da Lei”, e não do Direito e da Justiça..., para restabelecer a consciência e renovar as esperanças, sempre recorro à experiência do JUIZ DE DIREITO, com todas as letras maiúsculas, João Baptista Herkenhoff:
“Já no início da carreira de Juiz, rebelamo-nos contra determinação legal que estabeleciam fossem os presos mandados para o Instituto de Reabilitação Social em Vitória. Sempre nos pareceu que este procedimento constituía uma violência porque estabelecia o rompimento dos laços familiares do preso. Na Comarca do interior, o preso podia ter contacto com sua família. Na mesma linha, concedemos direito de trabalho externo ao preso. A experiência de maior eficácia ocorreu em São José do Calçado, no sul do Espírito Santo, onde a orientação preconizada obteve amplo apoio da comunidade. Em quatro anos e meio de judicatura na comarca, a reincidência criminal foi de zero por cento. Estribamos nossa conduta na Declaração Universal dos Direitos Humanos que manda preservar, como bem jurídico primário, a dignidade da pessoa humana. A reverência à dignidade da pessoa humana impedia tratar o preso como se fosse fera.
Integramos a Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de Vitória, durante o período da ditadura militar, e exercemos sua presidência, contra determinação legal expressa. A lei, em que pretendiam nos enquadrar, nos pareceu inconstitucional e contrária à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eu integrava essa Comissão, por um imperativo de consciência ética, e aleguei perante o Tribunal que a consciência é inviolável. Acima de ser um juiz, eu era um cidadão e uma pessoa humana. Minha defesa foi acolhida e fiquei livre de punição graças à posição assumida pelo Desembargador Homero Mafra, hoje falecido, mas nunca esquecido.
Lutei, irmanado a inúmeros concidadãos, pela “anistia ampla, geral e irrestrita” em favor dos brasileiros que foram proscritos pelo golpe de 1º de abril de 1964. Integramos oficialmente o Comitê Brasileiro pela Anistia e discursamos em praça pública e em recintos fechados, em favor da anistia. Entenderam os superiores hierárquicos que esse posicionamento era “político”, defeso ao magistrado. Respondi que a anistia não era um tema político-partidário. Se assim fosse, estaria proibido ao juiz imiscuir-se nesse assunto. A “anistia” era uma questão de justiça, era a ponte de reencontro dos brasileiros, era o caminho para a redemocratização do Brasil. Do magistrado não se cassara a cidadania e, em nome da cidadania, eu invocava o direito de lutar pela anistia.
Através de um despacho, suspendi a execução de todos os mandados possessórios que implicassem o despejo coletivo de famílias, em Vila Velha, onde judiquei na Vara Cível. Fundamentei o provimento judicial no argumento de que o “direito de morar”, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, precedia outros eventuais direitos obrigados pelo sistema legal. A repetida invocação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, num momento em que o país estava sob a égide do AI-5, era por si só um ato de insubmissão ao arbítrio reinante, insubmissão que manifestamos, nesta situação e em muitas outras, sem alarde mas com firmeza.
Numa fase histórica em que se proclamava o Brasil Gigante, sem problemas, pus o dedo na ferida, denunciando numa portaria a dramaticidade de milhares de crianças fora da escola (São José do Calçado, 1969). Determinei a matrícula compulsória das crianças. Pretendi exercer pressão não tanto sobre os pais, mas sobre o Poder Público que deveria providenciar as vagas para as crianças que estavam sendo matriculadas por ordem do juiz. A portaria aumentou em 35% a matrícula escolar, na comarca, segundo dados da época.
Não guardo qualquer mágoa desses episódios. Foram frutos de uma época, felizmente ultrapassada. O que pretendo dizer aos jovens é que sempre vale a pena seguir a própria consciência, ser fiel aos nossos credos. Erros podemos praticar porque, como diz a sabedoria popular, errar é humano. Mas se erramos, com retidão de propósito, o erro será apenas fruto de nossa falibilidade e das contingências que marcam nosso destino.”1
Pronto, estou refeito, retorno à minha realidade e ao trabalho.
Obrigado, mestre!
Conceição do Coité, 03 de fevereiro de 2008