Por Reginald D. H. Felker,
advogado (OAB/RS nº 2.064)
Fonte:SITE ESPAÇO VITAL
O juiz de Direito Gerivaldo Alves Neves, em excelente trabalho publicado pelo Espaço Vital recentemente fez importantes considerações sobre o Documento 319, do Banco Mundial, o CNJ e a Constituição Federal, dando o enfoque de um magistrado sobre a matéria. Gostaria de acrescer, agora, o enfoque de um advogado, sobre o mesmo tema.
Inicialmente cabe analisar qual o objetivo da reforma do Judiciário proposta, inclusive para o Brasil, pelo Banco Mundial. Assegura o texto que um programa de reforma do Judiciário deve ter em mente ... “assegurar um Poder justo e eficiente..”
Até aí, beleza! Mas o que o Banco Mundial entende por poder justo e eficiente?
Continua o texto: “...um Poder Judiciário eficaz e previsível é relevante ao desenvolvimento econômico”... mais, “o intuito das reformas é de promover o desenvolvimento econômico.” ... e adiante, - “o desenvolvimento econômico não pode continuar sem um efetivo esforço, definição e interpretação dos direitos e garantias sobre a propriedade ...”
Na ótica do Banco Mundial a eficiência do Judiciário estará em função de sua capacidade de definir e interpretar os direitos e garantias da propriedade, visando o desenvolvimento econômico. Não é a integridade do ser humano, nem a defesa do meio ambiente, nem a dignificação do trabalho, nem a valorização dos direitos de cidadania, nem o resguardo dos padrões culturais da nação. Não, nada disso interessa ao conceito de Judiciário eficiente - pela ótica do Banco Mundial.
O que interessa é o engajamento do Poder Judiciário ao projeto econômico que inspira a própria existência da entidade que propõe o documento...
Depois, o documento do Banco Mundial chama a atenção sobre a falta de confiabilidade da população no Judiciário, especialmente considerando a morosidade na prestação jurisdicional. Sucede, porém, que o documento esquece de referir as causas do número tão expressivo de procedimentos judiciais. Esquece de mencionar o grande número de desempregados que recorrem ao Judiciário para buscar o pagamento sonegado e diferenças legalmente atribuídas, direitos que não ousariam solicitar enquanto vigente o emprego. Esquece de mencionar os sucessivos planos econômicos impostos a ferro e fogo em obediência ao mesmo Banco Mundial e FMI, atropelando direitos e garantias individuais e constitucionais, geratriz de milhares de processos.
A propósito, publicação do STJ tornou público que em 85% dos processos em andamento naquela corte está envolvida a administração pública.
A seguir o documento do Banco Mundial passa a advogar a privatização da Justiça. Diz: “o acesso à Justiça pode ser fortalecido através de mecanismos alternativos de resolução de conflitos (MARC) estes mecanismos que incluem Arbitragem, Mediação, Conciliação e Juízes de Paz podem ser utilizados para minimizar a onerosidade e a corrupção no sistema”.
Será que os tribunais (?) de arbitragem atenderiam os hiposuficientes economicamente que não têm meios de pagar os custos da arbitragem?
Ora a arbitragem já existia no Código Civil de 1916, de mínima aplicação prática.
Depois, o novo sistema minimizaria a corrupção do atual sistema. Não nos parece que a corrupção seja um problema generalizado da magistratura, capaz de merecer a observação do texto. Ao mais afigura-se muito mais propício à corrupção o sistema proposto. Tentar impor a solução arbitral para o homem comum, nos seus litígios diários, como cidadão, como empregado, como consumidor, como membro de uma família, devendo arcar com prévios pagamentos de honorários arbitrais, sujeito não à lei, mas à interpretação subjetiva do que seja uma solução por equidade do árbitro, sem possibilidade de recurso, convenhamos, constitui uma regressão no grau de civilização que havíamos conquistado.
Em continuação, o texto do Banco Mundial traz uma afirmativa de difícil sustentação: “em termos econômicos, o Judiciário detém o monopólio da justiça e consequentemente apresenta incentivo para atuar de forma ineficiente.”
Podemos concluir, então, que devemos extinguir o monopólio da Justiça ao Judiciário... Por raciocínio lógico, poderíamos continuar concluindo que, como o Congresso Nacional, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, em suas respectivas áreas, detêm o monopólio da produção legislativa, por isso deverá ser extinto esse monopólio. Seria o caso , então, de terceirizarmos ou privatizarmos a função legislativa,em nome da maior eficiência.
A quem atribuiríamos essa função ? Certamente ao Banco Mundial, ao FMI, à OMC etc.
Em seqüência o Documente 319 faz a seguinte assertiva: “os programas de reforma do Judiciário devem rever as custas processuais determinando se são suficientemente altas ao ponto de deter demandas frívolas...”
A primeira indagação que nos ocorre é: o que considera o Banco Mundial uma demanda frívola? Pelo texto introdutório do documento permite-se concluir que será frívola toda a demanda que não diga respeito à definição e interpretação do direito de propriedade. E, em continuação, o texto conclui: “Nesse sentido também devem ser revistos os honorários advocatícios arbitrados pelo juiz.”
Veja-se que a majoração imoderada das custas, decretada por alguns tribunais e o aviltamento do honorários advocatícios, que sofremos no dia a dia, fazem parte da lição ditada pelo Banco Mundial.
Alguns tribunais e alguns setores da Magistratura têm feito a lição de casa, com muita aplicação, elevando custas e reduzindo honorários advocatícios, mesmo antes da instalação do Conselho Nacional de Justiça, que agora, como alerta o articulista anterior - juiz Gerivaldo Neiva - parece alinhar-se ostensiva e definitivamente nas regras preconizadas pela cartilha do Banco Mundial, cujas cinco metas fundamentais são:
1º) - Judiciário justo é o que melhor define e interpreta o direito de propriedade;
2º) - O monopólio do Judiciário na prestação jurisdicional deve ser extinto, privatizando-se a Justiça;
3º) - As custas processuais devem ser suficientemente altas para evitar-se maior número de ações;
4º) - os honorários advocatícios devem ser reduzidos, desestimulando o exercício profissional digno, independente e combativo; e na medida do possível o advogado deve ser afastado do processo judicial.
Seria importante que a OAB, a nível nacional e estadual se preocupasse mais na divulgação do texto e na análise desse documento 319, que fere profundamente o exercício profissional do advogado e os anseios de uma Justiça justa para todos.